O morango, pertencente ao gênero Fragaria, é uma fruta que encanta paladares ao redor do mundo, ostentando um lugar de destaque tanto em nossas mesas quanto na economia global. Com uma rica diversidade, o gênero Fragaria compreende mais de vinte espécies, cada uma com suas particularidades. O próprio nome, Fragaria, evoca a essência desta fruta, derivando do latim “fragga”, que significa fragrância.
A história do morango é um belo exemplo da intrínseca relação entre a humanidade e a natureza. Ao longo do tempo, por meio da domesticação, as mãos humanas moldaram as espécies vegetais, e com o morango não foi diferente. Esta jornada nos leva desde as suas formas silvestres, presentes em diversos cantos do mundo, até o morango moderno, de frutos grandes e suculentos, conhecido cientificamente como Fragaria x ananassa. Prepare-se para descobrir como essa transformação fascinante se desenrolou, unindo o sabor selvagem à doçura cultivada.
Os Morangos nas Américas: Um Tesouro Nativo Antes da Chegada Europeia
Quando os europeus chegaram às Américas, encontraram um continente rico em maravilhas naturais, incluindo diversas espécies de morangos que já eram domesticadas e utilizadas pelos povos nativos. Globalmente, na época da invasão, existiam quatro espécies de morangos domesticadas, e duas delas floresciam em terras americanas: a Fragaria virginiana, conhecida como “o morango escarlate“, e a Fragaria chiloensis, apelidada de o morango chileno“.
A Fragaria virginiana se distribuía abundantemente pela América do Norte. Com sua coloração vermelha intensa e boa produtividade, essa espécie viria a ter um impacto significativo na indústria europeia de morangos no século XIX. Já a Fragaria chiloensis apresentava uma distribuição curiosa, sendo encontrada amplamente na América do Norte e em áreas descontínuas da América do Sul, especialmente ao longo da costa do Chile e adentrando a Cordilheira dos Andes.
É fundamental reconhecer que ambas as espécies americanas já eram domesticadas pelos povos nativos muito antes da chegada dos europeus. No Chile, os povos Mapuche, entre o Rio Bío-Bío e o centro-sul do país, e os Picunche, entre o Rio Itata e o Rio Bío-Bío, foram pioneiros no processo de domesticação da F. chiloensis. Embora existissem formas vermelhas, a forma branca da F. chiloensis parecia ser preferida devido ao maior tamanho de seus frutos.
Os morangos nativos desempenhavam um papel importante na dieta e nos costumes dos povos indígenas. Há relatos de exploradores maravilhados com a abundância de morangos e seu cultivo pelos nativos. No Chile, por exemplo, os indígenas não apenas consumiam a fruta fresca, mas também a secavam ao sol e a fermentavam para produzir vinho. A beleza e o sabor dos morangos americanos impressionaram os primeiros europeus, que logo os incorporaram em seus próprios jardins. Acredita-se que a dispersão das sementes pelos pássaros contribuiu para a ampla distribuição dessas espécies ao longo do continente, e desde tempos remotos, a atração dos morangos pelos humanos certamente influenciou sua domesticação e cultivo. Assim, muito antes de serem descobertos pelos europeus, os morangos já eram um tesouro cultivado e apreciado pelos povos nativos das Américas.
O Morango na Europa Antes do Encontro com o Novo Mundo
Antes que as saborosas e grandes variedades americanas cruzassem o Atlântico, o morango já era conhecido na Europa, principalmente através da espécie nativa Fragaria vesca, carinhosamente chamada de “o morango madeira“. Esta era a espécie de morango mais amplamente distribuída no continente europeu. No entanto, em comparação com as cultivares que surgiriam após o encontro com as espécies americanas, a F. vesca era considerada uma fruta pequena e de menor importância.
Evidências da presença do morango na Europa desde tempos remotos podem ser encontradas em registros arqueológicos, com aquênios de morango descobertos em sítios Neolíticos, Romanos e Medievais. Historicamente, a F. vesca possuía diversos usos. Suas raízes e folhas eram empregadas na medicina como adstringentes, e seus frutos eram utilizados, inclusive, para clarear os dentes. Além de suas aplicações práticas, o morango silvestre também era apreciado por sua delicadeza e ocasionalmente cultivado em jardins para fins ornamentais.
A partir do século XVI, iniciou-se na Europa um processo de desenvolvimento de cultivares de F. vesca com frutos maiores. Este período marcou um primeiro passo na domesticação do morango europeu, preparando o terreno para a revolução que ocorreria com a chegada das variedades do Novo Mundo.
A Fragaria moschata, também conhecida como “o morangueiro almiscarado“, é nativa das terras altas da França e do leste europeu. A domesticação desta espécie começou antes do século XVI, com os primeiros registros de cultivo datando de 1570 na Wallonia e Alemanha. Há também muitos registros de seu cultivo na França no começo do século XVII. Essa espécie foi extensivamente cultivada na Europa (França e Alemanha) de 1400 a 1850 devido ao seu sabor e aroma desejáveis.
A Chegada dos Morangos do Novo Mundo à Europa
O início do século XVII marcou um ponto de inflexão na história do morango europeu com a chegada das espécies do Novo Mundo. A Fragaria virginiana, vinda da América do Norte, começou a despertar a curiosidade no Velho Continente. Há relatos de que a sua introdução pode ter ocorrido por meio dos colonizadores da Virginia, que encantados com o sabor e abundância da fruta em seu novo lar, teriam enviado sementes para a Europa. O explorador francês Jacques Cartier, que explorou a região do Rio São Lourenço já em 1523, também é apontado como uma possível via de introdução.
Em 1623, Gaspar Bauhin em sua obra Pinax, mencionou morangos “grandes” que cresciam na Virgínia, sendo um dos primeiros a referenciar o potencial desta nova espécie. Mais tarde, em 1624, Jean Robin, botânico de Luís XIII na França, elogiou a F. virginiana por sua atraente cor, tamanho considerável e agradável fragrância, tornando-a rapidamente popular. Contudo, permanece uma incerteza se a primeira introdução ocorreu na Inglaterra ou no continente europeu.
Um evento bem documentado foi a chegada da F. chiloensis à Europa em 1714, trazida por Amédée François Frézier. Durante sua expedição ao Chile em 1712, Frézier ficou impressionado com o tamanho extraordinário do fruto chileno, descrevendo-o como “tão grande como uma noz e, por vezes, um ovo de galinha“. A introdução dessas duas espécies americanas, apesar de promissoras, enfrentou um desafio inicial significativo: a dioecia – ou seja, a existência de plantas masculinas e femininas separadas, necessitando de uma planta do sexo oposto para a reprodução.
Descobriu-se que tanto a F. virginiana quanto a F. chiloensis possuem plantas masculinas e femininas separadas. Inicialmente, sem o conhecimento dessa característica, as plantas femininas trazidas para a Europa raramente produziam frutos ou não atingiam o tamanho observado em suas terras de origem, devido à falta de polinização adequada. Este mistério da frutificação precária só seria desvendado mais tarde, abrindo caminho para a verdadeira revolução do morango.
O Nascimento Acidental do Morango Moderno: Fragaria x ananassa
Por volta de 1740, um evento fortuito ocorrido em plantações conjuntas na Europa marcou o nascimento do morango moderno. O cruzamento acidental entre a F. chiloensis e a F. virginiana deu origem a um novo híbrido. A primeira aparição relatada de F. x ananassa foi na Holanda, mas relatos semelhantes surgiram em outros locais da Europa logo depois, sugerindo que o híbrido provavelmente surgiu repetidamente onde quer que as duas espécies parentais fossem cultivadas juntas.
O botânico francês Antoine Nicolas Duchesne, então com apenas 19 anos, desempenhou um papel crucial na identificação e descrição da origem híbrida desta nova espécie. Em seu livro de 1766, “Histoire naturelle des fraisiers“, Duchesne apresentou suas descobertas, creditando a F. x ananassa como um cruzamento entre o F. virginiana e F. chiloensis.
Duchesne também reconheceu que a F. x ananassa possuía flores hermafroditas, uma característica fundamental que permitia a produção de frutos mesmo em clones isolados, diferentemente de seus pais dioicos. A obra de Duchesne incluiu ilustrações de Fragaria ananassa, destacando suas características únicas. Apesar da clareza de suas observações, a explicação de Duchesne sobre a origem híbrida não foi imediatamente aceita por todos.
A nova espécie híbrida apresentava características notáveis:
- Aumento significativo no tamanho da planta e do fruto.
- Firmeza do fruto
- Sabor distintivo
- Aparência diferenciada
O nome “ananassa“, dado a esta nova variedade, foi uma homenagem ao abacaxi, que era considerada a “rainha das frutas” e também havia alcançado grande sucesso na Europa, refletindo a admiração pelo sabor e aroma do novo morango. A Fragaria x ananassa rapidamente se tornou o principal morango cultivado na Europa e na América do Norte devido às suas qualidades superiores.
A Expansão e o Melhoramento de Fragaria x ananassa: Moldando o Morango que Conhecemos
A ascensão de Fragaria x ananassa como o principal morango cultivado tanto na Europa quanto na América do Norte foi notavelmente rápido. Viveiristas e produtores abraçaram entusiasticamente a nova espécie, levando à seleção de inúmeras novas cultivares, particularmente na França, Grã-Bretanha e nos Estados Unidos ao longo do século XIX.
Um passo importante na diversificação, embora talvez não o suficiente para evitar uma base genética estreita, foi a introdução de germoplasma selvagem de Fragaria chiloensis da Califórnia por David Douglas por volta de 1830. Esta infusão genética enriqueceu a variabilidade disponível para o melhoramento. Notavelmente, os genes desta raça californiana permitiram o desenvolvimento de cultivares “everbearing“, capazes de frutificar continuamente ao longo de estações – o que chamamos variedades de dias neutros.
No século XX e continuando até o presente, estações experimentais intensificaram os esforços de melhoramento de F. x ananassa. O objetivo era criar variedades adaptadas a uma vasta gama de climas, frequentemente envolvendo retro cruzamentos com as espécies parentais, F. chiloensis e F. virginiana. Um exemplo notável é o lançamento de novas cultivares pela Universidade da Califórnia em Davis nos anos 1980. Estes cultivares incorporaram características de dia neutro, permitindo a floração e frutificação sob fotoperíodos curtos e longos, através da utilização de uma variedade selvagem de F. virginiana.
Nas últimas décadas, testemunhamos um aumento significativo na produção e na qualidade dos frutos de F. x ananassa. A disponibilidade de morangos frescos expandiu-se geograficamente e sazonalmente. Contudo, apesar desta evolução e do enriquecimento genético proporcionado por introduções como a da Califórnia, o morango que consumimos hoje possui uma base genética relativamente estreita, derivado de um número limitado de eventos de hibridização iniciais e seleções subsequentes. Essa limitada diversidade genética torna a cultura potencialmente vulnerável a novas doenças e desafios ambientais, realçando a importância da conservação e exploração contínua de germoplasma selvagem.
Lições da História do Morango para uma Perspectiva Regenerativa
A fascinante história da domesticação do morango, desde seus humildes começos selvagens até sua posição como uma fruta globalmente amada, ressalta o papel fundamental tanto da natureza quanto da intervenção humana nesse processo evolutivo. O morango é um exemplo eloquente de como a observação e a experimentação moldam o mundo natural em serviço das necessidades e desejos humanos. Contudo, uma lição crucial que emerge dessa jornada é a importância vital de preservar o material genético selvagem do morango.
Este banco de genes selvagens representa um recurso inestimável para a segurança alimentar futura. Como explicitado nas fontes e em nossa conversa, as espécies silvestres de Fragaria possuem uma diversidade genética que pode conferir características desejáveis para sistemas produtivos regenerativos, tais como resistência a pragas e doenças, tolerância a diversas condições ambientais e potencial para reduzir a necessidade de agroquímicos.
Em um cenário de mudanças climáticas, essa reserva genética torna-se ainda mais crítica para garantir a sobrevivência das espécies de morango. Os parentes selvagens podem portar genes essenciais para a adaptação a novas e intensificadas pressões ambientais, como secas, temperaturas extremas e o surgimento de novas doenças. A conservação contínua dessas raças e subespécies selvagens é, portanto, fundamental.
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